sexta-feira, 4 de abril de 2008

As Andanças de Fulgêncio Borba - PARTE I

Fazia um frio de doer os ossos naquela noite invernal de meados de julho. Fulgêncio Borba caminhava lentamente sobre os trilhos, ao longe ouvia a algazarra dos cães. Ia sem rumo, como há tempos o fazia, desde que decidiu largar tudo em sua terra natal. Caminhava ao mesmo passo das lembranças. Recordava os pormenores da longínqua infância simples e feliz, apesar das inúmeras privações sofridas. Pensava em como estaria seu irmão, Custódio Borba. Sentia saudades, mas não se arrependia de ter colocado a trouxa de roupas e pertences pessoais nas costas e seguido rumo desconhecido, que o trouxera àquelas bandas. Sua barriga emitiu um som fenomenal alertando-o da fome impertinente.
Nos últimos dois dias o infeliz alimentava-se apenas de uma parca ração de grão-de-bico e algumas bananas que colheu ao longo do caminho, nas proximidades da distante vila de Catingó. Puxou o relógio da algibeira e sob o luar de inverno constatou que caminhava há dez horas ininterruptas. As pontas dos dedos já estavam dormentes, dentro dos coturnos, herança do exército revolucionário, no qual acabou perdendo além da dignidade e boa parte da juventude, os dedos mínimo e anular da mão esquerda.
A guerra era coisa triste, disso lembrava-se muito bem. Além das mutilações, do desespero vivido nas trincheiras e do vazio que sentia ao matar os inimigos, que para ele poderiam ser até mesmo amigos, o maior sofrimento era a tal da hierarquia. Sempre, desde garoto, avesso às regras e aos convencionalismos, impetrados pela sociedade, costumava pagar o preço pelas idéias contrárias e contestadoras quanto ao sistema, seja lá qual fosse o sistema. Fulgêncio era, como diziam seus pais, um caso perdido.
Não sabia precisar quantas vezes foi mandado à solitária por desacatar ordens de seus superiores. Considerava-os, um bando de cornos hipócritas, aproveitadores, chupins do estado e do povo.
Seu maior ressentimento com o exército não era a perda dos dedos, mas a falta de reconhecimento de um ato de bravura, protagonizado por ele e seu irmão, Custódio, que culminou com o extermínio de três pelotões de sessenta homens cada, na guerra das Guianas, quando retornavam da encruzilhada dos mundos, caminho antes percorrido por Átila – O rei dos hunos, foram pegos de surpresa com um número inferior de soldados, conseguiram se embrenhar na mata e moveram-se como Gambé Maranduvá, O Fantasma, entocaiando o último pelotão inimigo apenas com pequenas e frágeis zarabatanas, presente de um grande amigo índio de uma tribo Kaigang do Norte, a qual, até hoje, faz parte da Unificação das Tribos da Mata.
Para Fulgêncio Borba aquela foi a gota d’água. Além de não reconhecerem o ato de bravura de ambos, ainda os acusaram de traição. A injustiça o enojava e a raiva subia-lhe à cabeça.
A fim de evitar mais problemas, comunicou seu irmão, Custódio, da decisão de deserdar. Este, por sua vez disse que o acompanharia. E, assim o fez dois dias depois quando conseguiram se livrar das sentinelas escolhidos, pelo General Gutierrez, para escoltá-los até o quartel general onde o estado maior estava alojado e os julgariam por alta traição às forças armadas.
Fugiram para os Montes Silvinos, naquela mesma noite acabaram se separando e nunca mais se encontraram, foram perseguidos por colegas de farda durante seis longos meses. Fulgêncio alcançou o Porto de Grande Rio, no extremo sul do país, viu exposto em todos os locais públicos fotos sua e de Custódio, procurados por traição. Embarcou clandestinamente em um cargueiro de Bandeira Francesa, porém com tripulação que mais parecia os operários de Babel, tamanha variedade de nacionalidades dos marujos. Pelos seus cálculos falavam-se mais de 25 línguas naquela velha barcaça carcomida pelo salitre e pelas intempéries. Foi descoberto, dois meses após o início da viagem, dividindo um porão com ratazanas que seriam facilmente confundidas com gambás, devido ao tamanho. Estava verde, fraco e zonzo. Não manifestou sequer uma ponta de resistência, mesmo que o quisesse não conseguiria, tamanha a fraqueza que o abatia. Foi surrado e jogado junto à pilha fedorenta de lixo, no cais do porto. Não tinha a mínima idéia de onde estava, imaginava estar em algum país sul-americano, pois tudo o que ouvia era em castelhano.
Enquanto caminhava naquela madrugada fria de meados de julho, lembrava-se dessas aventuras e de tantas outras, das quais alguns detalhes já não lhe eram claros. Deu uma topada em um dos dormentes de madeira daquela interminável estrada de ferro. Não sentiu dor alguma, seus dedos estavam petrificados. Sacou da trouxa seu velho e inseparável cantil e sorveu dois goles de uma cachaça curtida em barril de carvalho por longos anos, talvez duas décadas. Aquele líquido lhe deu forças para continuar a caminhada. Logo à frente, sobre um monte no lado direito, avistou uma infinidade de cruzes, estava diante do cemitério. Fez o sinal da cruz repetindo o ato três vezes, como sempre o fazia ao passar por jazigos ou igrejas e concluiu mentalmente que deveria estar próximo ao vilarejo.
Lembrou de Frei Antônio Maria de Los Santos e suas palavras domingueiras: - Toda cidade ou vila tem ao menos um cemitério, para enterrar os seus; uma igreja, para celebrar as bodas; e uma praça, para promover as festas santificadas.
Isso era uma verdade incontestável, como pôde verificar ao longo de uma vida sem paradeiros ou destinos certos.
Cansado e faminto resolveu apressar o passo. Adiante, encontrou, às margens de uma linda lagoa que refletia a imensa lua invernal, dois homens de aparência rude pedalando freneticamente suas bicicletas, junto à linha férrea, e perguntou-lhes.
- Como se chama esse povoado?
Um dos homens, grande, vermelho e bonachão, respondeu-lhe já se afastando:
- Chama-se Y-embê, forasteiro.
- Que nome estranho! - pensou Fulgêncio, consigo mesmo.
Ao final de uma longa curva avistou as primeiras luzes da vila. Escutou uma música alegre aproximando-se e, ao fundo um som forte. Deteve-se por um momento para certificar-se de que seus sentidos não o estavam traindo. Na verdade era o som do mar. Aquele som inconfundível lhe deu a certeza de que o mar estava próximo. Caminhou mais um quarto de hora e teve uma das visões que haveria de se lembrar dez anos depois quando estaria gravemente ferido, após a explosão da caldeira na armação baleeira de Y-embê. Viu a mesma lua, que há pouco estava refletida na lagoa, imensa sobre um mar bravio e que exalava um suave perfume de rosas. Sentiu-se vivo, novamente. Apressou ainda mais o passo, principiando a correr com os pés a essa altura completamente dormentes. Avistou a poucos metros um desordenado de casas maltratadas com luzes coloridas. Os telhados irregulares misturavam folhas de zinco, que refletiam a lua, telhas de amianto e até latas de azeite abertas de qualquer maneira.
Parou em frente à primeira casa. Era uma pequena casa de um azul desbotado, os postigos das duas janelas frontais estavam entreabertos, a porta estava escancarada. Do interior vinha uma mistura de música tocada por vitrola, gargalhadas, sussurros e gemidos. Entrou e dirigiu-se ao balcão. Uma mulher franzina o atendeu. Tinha longos cabelos negros, olhos pequenos, nariz pontiagudo, assim como os italianos, boca pequena, lambuzada com batom de um vermelho berrante, o rosto marcado pelo tempo a envelhecia de tal maneira que aparentava uma idade muito superior a que realmente deveria carregar nos ombros.
- O que o senhor deseja? – perguntou à Fulgêncio, com uma voz fina e enjoada.
- Preciso de algo para comer. – respondeu Fulgêncio, mais esfaimado do que cansado.
A mulher deu uma gargalhada estridente. Todos nos interior da velha casa olharam o pobre forasteiro, inclusive Alaíde, que jogava uma partida de bilhar, no centro da sala mal iluminada, na qual havia uma velha mesa de snooker com o pano verde remendado tantas vezes que mais parecia uma colcha de retalhos. Àquela, foi a única mesa de bilhar durante dois quartos de século no vilarejo. Entalhada em pinho de Riga, a qual cupim nenhum do mundo consegue penetrar, nem mesmo os famosos e temidos cupins gigantes da Ilha de Itacolomi. Foi trazida pelos primeiros caçadores de baleias que chegaram à região, muito antes da linha férrea e do porto serem construídos.
- Qual é a graça? – perguntou Fulgêncio, desolado.
- Ora, o que não lhe faltará por aqui é o que comer. – emendou a pequena atendente, em meio às gargalhadas.
Autor: Beda Batista
Escrito em: Julho de 2002.
Revisado e ampliado em: Novembro de 2003.

Nenhum comentário: