sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os procurados...


“O que é que está faltando?!” A indagação era feita por sua própria consciência enquanto os pensamentos de Iberê iam longe.  Sentado à meia-luz ao lado do leito 626-1, no qual roncava o seu velho pai, internado às pressas à espera de um transplante.
 
O sofrimento é mais uma daquelas provações impostas pela vida para testar nossos limites e ver se aguentamos o “cagaço”. Pensou ele, observando o movimento do abdômen avantajado do pai, que ressonava ligado à uma infinidade de fios e aparelhos.  

Olhou aos céus e informou que a sua cota já era suficiente e que já havia entendido o recado direitinho.

A madrugada abafada do verão no alto vale não podia ser aplacada com apenas dois ruidosos ventiladores que giravam e teimavam em espalhar aquele calor modorrento pelo quarto de leito único.  
A televisão em preto e branco, sem volume noticiava, à moda Chaplin, as desgraças recentes nas capitais.  O corredor sombrio e silencioso do velho hospital convidava a divagar sobre uma meia vida turbulenta recheada de altos e baixos, alegrias e tristezas, partidas e chegadas como uma verdadeira colcha de retalhos do cotidiano.  Um mosaico de cores, lugares e cheiros que o remetiam aos mais variados cenários num piscar de olhos.  

Nesses momentos sentia-se como um telespectador que assiste ao filme de sua própria vida, sem pagar nada por isso.  Ou melhor, a sua cota já fora paga por todas as escolhas que fez e também pelas que deixou de fazer.  “Ces’t  la vie”.

Da infância trazia boas recordações.   As peladas no campinho onde hoje jaz uma praça abandonada e triste.  
As guerrinhas de torrões nas areias amarelas e repletas de bichos de pé no terreno baldio ao lado da casa do Seu Marcolino.  Que tempos depois recebeu uma casinha verde que fora palco de um dos mais bizarros casos de fuga de casais da história da vila. 

À época Marli, neta do Seu Marcolino namorava um “polaco”.  O romance estava “descambando” para algo mais sério.  Seu Leno, o pai da moça, andava cabisbaixo, visivelmente preocupado com o nome da família Dos Anjos e com o que as más línguas andavam dizendo de uma das suas.  Afinal, “falar pode, só não pode ser das minhas”, sentenciava o velho pai.

Certo dia, um domingo de manhã, correu a notícia à boca pequena que Marli tinha fugido com o namorado.  As especulações eram as mais variadas.  
Uns diziam:
- De certo estão em Imaruí, o rapaz têm parentes por lá. 
Outros retrucavam:
 - Não.  Que nada.  O rapaz é de família dos Bentos, estão lá em Santo Antônio dos Anjos da Laguna.
E, outros afirmavam:
- Tenho certeza que estão na Palhocinha, bem sossegados.

Mais rápido do que a fuga do enamorado casal, os “arapongas” de plantão do bairro, que dormiam com um olho aberto e outro fechado, trataram de armar uma bolsa de apostas.  O bolão seria destinado a quem informasse o correto paradeiro do casal de pombinhos.

Os valores apostados já montavam uma grande quantia ao final do dia e a expectativa aumentava na vizinhança que em polvorosa só fazia aumentar o bolo de dinheiro que ficou sob a responsabilidade da Dona Deza, a organizadora do novo jogo de azar.

Ocorre que dois dias depois do sumiço, a dinheirama na casa da Dona Deza começava a tirar-lhe o sono. Em virtude da grande repercussão do caso, gatunos dos mais diversos rincões começaram uma procissão à vila, antes afamado apenas pelo puteiro com nome de fruta, agora recebia a visita de malandros que vinham e circulavam no bairro com a desculpa de beber cachaça nos botecos do Seu Pióca ou do Seu Almor.

Seu Leno, homem bem relacionado no meio político e policial solicitou então audiência com o prefeito para que esse interferisse no caso e pleiteasse junto ao delegado uma diligência a fim de encontrar os mancebos desaparecidos.

O prefeito, homem de bem e de prezar pelos bons costumes e valores de família empenhou a palavra que faria o que estivesse ao seu alcance para elucidar o paradeiro dos fugidios.

Na boquinha da noite, o fusca da polícia apontou na esquina da rua com a sirene gritando aos sete ventos e o bairro todo saia à rua para ver o que estava se sucedendo.  O veículo oficial da autoridade policial parou defronte à casa do Seu Leno(nos fundos morava seu Pai, Marcolino), dois policias carrancudos desceram e se empertigaram defronte ao portão carcomido pelo salitre.  Os policiais não chegaram a pronunciar uma única palavra e a rua foi imediatamente invadida por uma torrente de curiosos, apostadores e arapongas.  A disputa por um lugar era ferrenha, com espectadores sobre árvores, muros e até nos postes de madeira que sustentavam a rede elétrica.  

No meio da turba, a porta da casinha verde se abriu de supetão, a multidão emudeceu e de lá surgiram as duas figuras mais procuradas da cidade com os cabelos desgrenhados, olhos fustigados pelos últimos raios de sol emanados sobre o morro da caixa d’agua, ambos apresentavam olheiras e as caras desfiguradas pelo esgaziamento dos últimos dias.

A multidão gritou em uníssono: “São Eles...Os Procurados...”.

Seu Leno quase teve um colapso nervoso. O patriarca da família Dos Anjos, Seu Marcolino, desmaiou e precisou ser abanado pela família da fugitiva e passou uma semana tomando chá de macela galega para aplacar o fervilhar do sangue.  

Dona Enê, a mãe da jovem, passou a olhar a vida dos outros com outros olhos.  Aliás, a partir de então, não se podia chamar de olhar e sim de espiadela, pois eram apenas os olhos que apareciam por sobre o batente da grande janela frontal na casa da família Dos Anjos.

Quando a multidão se acalmou, e os policiais se retiraram com dificuldade, tentando abrir caminho no meio do povaréu, sendo ovacionados por muitos pela resolução brilhante do caso mais comentado dos últimos tempos na pequena vila, alguém gritou lá do meio.

- Quem ganhou o bolão?

Dona Deza, mais que depressa correu em casa e pegou o caderninho de registro das apostas e cercada pelos mais exaltados apostadores verificou que ninguém tinha apostado no esconderijo mais prosaico.  

Dessa forma, ninguém era merecedor do maior prêmio  já acumulado em dois dias de que se tem notícia.

Então, fora organizada uma fila que dava voltas e mais voltas no quarteirão a fim de se fazer a devolução das quantias apostadas aos seus devidos donos, os apostadores. Pela manhã de quarta-feira havia ainda uma dúzia de pessoas aguardando o reembolso de seus valores. 

Na casinha verde, o casal permaneceu por mais uns dias até arranjar um verdadeiro ninho de amor.

O aparelho ao lado da cama começa a apitar informando que a bateria está fraca.  Iberê acorda de seu devaneio e vai atrás da enfermeira para corrigir o problema.

A madrugada está apenas começando.

Beda Batista.
Escrito em 11/01/2013
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Este conto é meramente uma obra de ficção.  As personagens, os lugares e as situações não correspondem à vida real e não foram baseadas em fatos reais. 

Publicação autorizada, desde que sejam citadas a fonte, o autor e a data em que foi escrito.