quinta-feira, 8 de maio de 2008

As Andanças de Fulgêncio Borba - PARTE II

Todos se uniram numa sonora e coletiva gargalhada. Fulgêncio ruborizou-se, sentindo o sangue ferver, seus pés formigaram, voltou a sensibilidade nos dedos. Puxou uma banqueta, de madeira, com espaldo alto, sentou-se e apoiou os cotovelos sobre o balcão de fórmica, de um azul desbotado, engordurado e seboso, segurando a cabeça entre as mãos. O frio, aos poucos foi dando uma trégua naquele ambiente desconhecido e lúgubre. Anita, a atendente, depois de refeita das gargalhadas, trouxe-lhe um prato fundo, feito de barro, servido de sopa de berbigão, barbatanas de baleia desfiadas e um pedaço de pão de milho caseiro. Fulgêncio agradeceu a gentileza e atracou-se como há tempos não o fazia. Ao mesmo tempo em que saciava a fome, divagava num emaranhado de acontecimentos, ora recentes, ora distantes.
Lembrou-se de uma manhã ensolarada, na remota infância em Santana de Mirim, andando junto ao mano Custódio, sobre os pés de lata. Recordou, precisamente, cada palavra, cada som, cada cor daquela alegre manhã distante. Inclusive do trabalho para conseguir quatro latas de manteiga vazias, percorrendo todo o vilarejo e encontrando a última delas jogada às margens da imensa lagoa homônima. Riu-se ao lembrar da destreza que possuíam ao fazer os mais inacreditáveis malabarismos sobre as cabaças metálicas. No entanto, não entendeu porque pensava nessas bobagens do passado, justo numa noite longa e fria, recém chegado a uma vila de nome estranho, com um ar agradável que lhe enchia os pulmões e a cabeça de recordações. Decidiu ali, debruçado sobre o prato de comida, que procuraria guarida e permaneceria alguns dias no vilarejo.
Já se passavam vinte e oito semanas, desde que pousou por mais de dois dias seguidos em uma única vila. Necessitava ver e conhecer gente nova. Talvez ali fosse um bom lugar para isso. Se não o fosse, não teria muito trabalho para partir. Era apenas o tempo de juntar os trapos e cacarecos, colocá-los no trouxa e seguir viagem.
Quando acabava a refeição sentiu uma mão quente afagando-lhe o pescoço, um tremor percorreu-lhe a espinha da base até o couro cabeludo, fechou os olhos e veio em seus pensamentos a imagem de Camila. Entrou num transe momentâneo, até ouvir a voz macia e doce de Alaíde. Nesse momento, Fulgêncio, despertou de seus devaneios e sentiu o coração palpitar mais rápido.
Alaíde era uma mulher atraente, longos cabelos louros, escorridos até a cintura, olhos verdes, que pareciam esmeraldas, pele clara bronzeada pelo fustigante sol da região, cintura fina como um pilão, quadris largos, típico das holandesas parideiras, coxas grossas e bem torneadas, seios fartos e um sorriso hipnotizante. Era sem dúvidas uma bela mulher. Fulgêncio ficou se perguntando o que aquela mulher tão bela fazia numa pocilga de luzes coloridas. Como se adivinhasse os pensamentos do forasteiro, Alaíde falou calma e solenemente.
- Herança. Meu pai era dono de todas as casas do lado direito da estrada de ferro.
- E o que lhe aconteceu? – perguntou Fulgêncio, perplexo com a resposta à sua pergunta mental.
- Foi ao encontro de Iara - a Sereia, e nunca mais voltou. – respondeu a jovem, com um tom melancólico nas palavras.
- Eu era apenas uma garotinha quando ele partiu, fui criada por Dona Chimbica, uma velha conhecida de meu pai. Mas, infelizmente, Dona Chimbica não está mais entre nós, subiu aos céus como “Remédios – a Bela”. – completou a belíssima Alaíde.
Fulgêncio lembrou de ouvir qualquer coisa a respeito de Remédio, mas não pode precisar aonde, nem quando. Ficou em silêncio admirando a beleza de Alaíde, que se afastou para dar algumas pequenas ordens às meninas da casa.
Procurou novamente o relógio de bolso e conferiu as horas. Aproximava-se das quatro horas da madrugada, os galos garnisés da vizinhança davam os primeiros sinais da alvorada. Fulgêncio necessitava de um bom banho para recompor a postura de um valente ex-soldado da revolução. Nesse mesmo instante ouviu ao longe o apito do trem, que se aproximava vagarosamente, como de costume, trazendo mantimentos e passageiros até o fim da linha, em Y-embê.
O mesmo trem partiria, no começo da noite, fumegando como se não conseguisse sair do lugar por força das encomendas que levava, carregado de uma variedade de produtos extraídos de baleias: óleo, para a iluminação pública na capital, barbatanas, para a confecção de espartilhos e sombrinhas das madames, carnes e nadadeiras, para o preparo de pratos sofisticados no hemisfério norte, e ossos, que serviriam para a decoração de bares e casas da velha e rançosa nobreza da Europa Setentrional. Nos vagões finais, iam os passageiros, admirando a paisagem invernal, em meio às gaiolas, porcos, galinhas e tudo o mais imaginável e possível.
Fulgêncio dirigiu-se à Alaíde e perguntou-lhe se havia algum quarto disponível. A jovem acenou-lhe positivamente. Acertaram o preço e Alaíde o conduziu por um longo e estreito corredor com inúmeras portas perfiladas, desenhadas e escritas nas mais diversas cores e idiomas, como um gigantesco painel. Ao final do corredor, parou, abriu a última porta a esquerda, acendeu a vela pendurada em um castiçal de cobre envelhecido e azinabrado e disse:
- É simples, mas aconchegante.
- Não sou de muito luxo. – retrucou Fulgêncio.
- Se quiser banhar-se peço à Anita que aqueça água. – disse gentilmente Alaíde.
- Não, pode deixar, estou muito cansado. Preciso de um longo sono antes de pensar em algo mais. – respondeu Fulgêncio, agradecendo a gentileza com um sorriso.
- Fique à vontade. – disse a bela jovem, retirando-se em seguida.
Fulgêncio largou a trouxa sob a escrivaninha, sentou-se na cama e vagarosamente desamarrou os surrados coturnos.
O forte vento, vindo do pólo sul, assobiava nos velhos postigos apodrecidos, pela maresia e umidade. A sinfonia marinha era ainda mais forte no alvorecer. Os pássaros, em algazarra, revoluteavam naquela bela aurora de julho. O trem aproximava-se cada vez mais, fazendo tremer a casa e tudo o que havia em seu interior. A sombra produzida pela meia luz da vela tremulava, formando incontáveis figuras indecifráveis.
Desvencilhou-se do calçado, estirou-se na cama com a velha calça de tergal, tirou apenas o ponche, amigo inseparável na sua longa jornada solitária. Sentiu as pernas formigando, sentiu terríveis cãibras nas panturrilhas, que chegavam a doer-lhe os rins. Massageou e aqueceu as pernas até que caiu em um sono profundo.
Dormiu por doze dias. Alaíde ia diariamente verificar se o forasteiro necessitava de algo, mas Fulgêncio manteve-se imóvel por todo o tempo, em virtude do cansaço acumulado. Nem durante as comemorações de San Juan Baptista, na qual a vila recebia anualmente milhares de visitantes para uma semana de festejos, o homem acordou ou sentiu-se perturbado pelo barulho e pela agitação no povoado. Nem os gramofones adaptados, que anunciavam a Mulher Barbada da Finlândia, o Homem Bala Britânico, o Faquir Indiano, de 200 anos e o Anão engolidor de espadas, principais atrações do circo Neozelandês, incomodaram Fulgêncio em sua profunda hibernação. No décimo dia, Alaíde começou a ficar preocupada, acreditando na possível morte do forasteiro, frente ao tempo e imobilidade do homem. Tranqüilizou-se apenas após certificar-se que Fulgêncio Borba não tinha a temperatura, a cor e nem a aparência dos mortos. Ao menos, não daqueles que a jovem conheceu ou presenciou.


Autor: Beda Batista
Escrito em: Julho de 2002
Revisado e ampliado em: Novembro de 2003.