NAQUELA
ÉPOCA
Caminhando pelas ruas
chuvosas da cidade dos príncipes, Anna pensava nos tortuosos caminhos que a
levavam novamente à maior cidade do estado.
Buscando uma nova residência para mudar definitivamente de vida e abandonar
os sofrimentos que a marcaram, na luta para criar os seus filhos. Anna deparou-se com os arranjos iniciais,
tratados com a senhoria para locação de uma modesta casa em estilo enxaimel na
periferia da cidade. A frustração
ocorreu no segundo encontro, quando a velha senhora desdisse o acordo verbal
realizado pelo esposo e acabou tirando o chão dos pés de Anna. O principal motivo daquela viagem era a
formalização do contrato de aluguel e a correspondente entrega das chaves do
imóvel, que daria um novo rumo à vida de sua família. Mãe de cinco filhos, abandonada pelo marido e
travando batalhas diárias para prover o sustento dos seus, Anna dispunha de uma
fé inabalável e uma força descomunal que moviam seu corpo franzino e lhe davam
o ânimo necessário para enfrentar as adversidades e reveses que a vida insistia
em colocar em seu caminho.
Naquela tarde, no entanto, Anna
estava aflita, pois todos os planos que fizera no último mês estavam fadados ao
fracasso pela simples má vontade de uma senhora de humor azedo e cara de poucos
amigos, além, é claro, de um homem sem pulso firme, que cedia aos humores e às
vontades da esposa.
Sentada no banco do terminal
urbano, próximo ao mercado público municipal, a jovem mãe pensava aflita nas
alternativas que a vida lhe dedicava.
Lembrou-se então que um
parente distante morava na cidade, e que, talvez, se o encontrasse a sua sorte
poderia mudar. Mas, numa cidade daquele
tamanho, seria praticamente impossível, encontrar alguém sem ao menos um
endereço. Em suas orações, pedia silenciosamente, que nosso Senhor intercedesse
por ela e iluminasse seus caminhos a fim de orientar seus passos.
A chuva não dava tréguas e o
rio que cortava Joinville, de norte a sul, já transbordava em vários pontos,
transformando-a num pandemônio, o que, invariavelmente, preocupava os
moradores, que estavam cansados e já não lembravam quantas vezes tiveram de
deixar suas casas por causa das constantes cheias. Os coletivos apinhados de gente encontravam
dificuldades em chegar ao terminal, pois as ruas às margens do rio estavam completamente
alagadas impossibilitando a travessia motorizada. Anna continuava suas preces agora pedindo
também pelo fim das chuvas para que àquelas pessoas trabalhadoras não perdessem
seus pertences e tivessem de abandonar seus lares. Enquanto isso, os agentes de transporte
municipal orientavam os transeuntes e passageiros a buscarem os abrigos públicos,
oferecidos pela cidade nos casos de enchentes.
Anna não tinha alternativa, pois todos os transportes intermunicipais,
partindo da cidade dos príncipes foram interrompidos, de maneira que não tinha
como retornar à sua cidade natal, a única saída seria pernoitar num
abrigo. As lembranças das tristes
histórias de família contadas por sua mãe, o medo do desconhecido e a incerteza
do que poderia lhe acontecer eram inevitáveis.
Bateiras cruzam ligeiramente
o canal, que separa o bairro central e a periferia da cidade, fazendo o
transporte da população ribeirinha para os abrigos, desde a madrugada, quando a
notícia das cheias fora anunciada nas rádios locais. Idosos, crianças e mulheres tinham prioridade
naquele fuzuê que se instalava nas ribanceiras próximas ao rio e que serviam de
atracadouros naturais para os canoeiros.
Anna aguardava impaciente e frustrada num dos barrancos, enquanto o
aglomerado humano ia crescendo. O choro
de crianças irritadiças e o murmúrio lamentado dos velhos dava um ar ainda mais
melancólico à situação. Cachorros, gatos, galinhas, cabras, porcos,
cavalos e gado eram levados pelos seus proprietários aos barrancos na esperança
de conseguir salvar parte importante de seu sustento. A algazarra era geral, o que dificultava
ainda mais o trabalho dos voluntários, responsáveis pela organização das filas
e de relacionar em listas improvisadas os nomes de quem buscava proteção à
intempérie.
Anna ouviu seus pensamentos
que vagavam por ali, dizendo algo do tipo: “já que te propuseste a lutar pela
mudança de vida, não podes desistir agora.” Mesmo em meio à grave crise que se
abatia no Vale do Itajaí por ocasião das chuvas intermitentes, seu ânimo estava
renovado, como se toda àquela chuva houvesse lavado sua alma, preparando-a para
novas batalhas.
- Ei Senhora, ei a Senhora
está bem? – Uma voz de garoto a trouxe a tona dos devaneios.
- Sim. Estou bem. - respondeu Anna, sem muita
convicção.
No abrigo, Anna não deixava
de pensar em como as crianças estavam.
Se tinham se alimentado, se foram à escola ou estavam fazendo bagunça e
brigando entre si. Não era fácil a
criação de cinco filhos, mas ela não reclamava e lembrava sempre: “Deus dá o
frio, conforme o cobertor”.
Desde que fora abandonada
pelo ex-marido, ela batalhava o sustento diário dos filhos fazendo fretes de
carroça, puxada por um inestimável cavalinho branco. A filha mais velha, Cléo, era empregada
doméstica na casa da irmã caçula de Anna, uma costureira que tinha um casal de
filhos. Cléo sonhava em ter uma vida
melhor e ajudava no sustento dos irmãos menores. O mais moço, Francisco, tinha vinte e três
dias de vida, quando João a abandonara, sem remorsos, deixando para trás uma
jovem e seus cinco filhos numa humilde casa, e, fora viver com a segunda família
que havia constituído na cidade das minas de carvão, no sul do estado.
A vida não tinha sido fácil
até ali, mas ela tinha confiança em Deus e esperança de que dias melhores
estavam por vir. Disposição para o
trabalho digno e bravura eram marcas registradas das mulheres da família. Todas, em maior ou menor grau tiveram de
alguma maneira que demonstrar coragem e bravura frente às dificuldades que se
abatiam de tempos em tempos sobre a família.
Com ela, certamente, não seria diferente.
Certa vez, sua mãe lhe
contou como o avô desalmado, havia tirado todos os filhos, um a um, da avó e os
levara para a sua concubina cria-los.
Naquela época, os homens tomavam as decisões mais arbitrárias possíveis
sem precisar dar quaisquer explicações a quem quer que seja. Principalmente, às mulheres que eram
completamente submissas aos homens em casa e em qualquer ambiente. Muitas crueldades foram cometidas pelos
homens, em nome da honra e do bem, certos que estavam da sua superioridade em
relação às mulheres.
Mas as mulheres desta
família mantinham sob sua égide a disciplina rígida e o caráter imaculado. Ainda que os sofrimentos lhes escorressem
como água buscando uma saída, todas mantinham a seriedade, a confiança e a fé
em Deus, certas de que dias melhores estavam por vir.
Lembrou-se das histórias
contadas pela saudosa Tia Julinha. Tia Júlia,
carinhosamente chamada pelo diminutivo, foi quem ingressou Anna nas estranhas
histórias familiares que acompanhavam a família em uma eterna circunavegação de
fatos, coincidências e desencontros, assim como o espanhol Fernão de Magalhães
o fez ao redor da terra, embora não tenha voltado vivo para receber os louros
da fama.
Tia Julinha não permitia que
brincassem com espíritos, pedindo sempre respeito aos desencarnados. Ela tinha o dom da clarividência e conversava
horas a fio com familiares próximos e distantes, além de conhecidos da família
desde eras imemoriais que por motivos diversos haviam feito a passagem.
Ela trazia recados do
universo paralelo com os mais diversos fins, desde pedido de desculpas até
indicação de locais de interesse familiar, para a guarda de bens e valores.
Tia Julinha vivia falando
de uma prima destemida, que todos admiravam pela bravura da mulher guerreira,
respeitada por estas paragens de colonização açoriana, no Uruguai e na Itália,
uma tal de Anita, que era sua prima e que vez por outra aparecia para longas
tardes de broas de milho, café coado e confidências extra temporais. Anos depois vim, a saber, mais detalhadamente
da verdadeira história que rondava Anita e de quem realmente se tratava. Simplesmente, Ana Maria Ribeiro da Silva.
Nasceu em Santo Antônio dos Anjos da Laguna, casou-se com um sapateiro
pinguço, que foi morto enquanto lutava nas tropas da colônia contra a Revolução
Farroupilha e a República Juliana. Nos
longos anos de confronto entre os farroupilhas, liderados por Bento Gonçalves,
e, o exército imperial, milhares de brasileiros morreram. Lembro-me de uma tarde em que adentrei ao
quarto de tia Julinha e ela chorava baixinho, enquanto resmungava e pedia para
a prima mudar de assunto, posto que a história daquele massacre em Imaruí, perpetrado
pelas tropas de Canabarro, a amolava por demais. Anita participou ativamente, ao lado de
Giuseppe Garibaldi, seja no mar, local em que o italiano lutava com maestria,
por dominar os seus segredos bem como os da navegação, passados pelo seu pai;
ou em terra onde a pequena catarinense dominava laço e montaria, além de
manejar com maestria punhais, lanças, facas e armas de fogo. Ou seja, Anita Garibaldi era prima irmã de
minha tia avó. Tínhamos uma heroína na
família e todos ignoravam a importância que nossa parenta exerceu dando
exemplo, a muitos marmanjos, de como se portar em uma peleja. Aquilo me deixava intrigado, e hoje penso que
este tenha sido o principal motivo das minhas incessantes buscas nos sótãos da
família garimpando manuscritos antigos e quaisquer tipos de vestígios que
pudessem ao menos dar uma luz sobre parte da história da minha família, do meu
povo e do meu país. Assim a nossa
história vai se fundindo com os acontecimentos que ocorreram em tempos antigos,
em lembranças que se estendem das águas límpidas do litoral catarinense
colonizado por açorianos aos pampas gaúchos, vertente das missões dos sete
povos. Abrangendo o sul do país e descambando
lá para os lados dos descampados do Uruguay.
Não
que isso mudasse alguma coisa a minha vida.
Mas, certamente, mudou a vida de nossas famílias, que se envolveram
diretamente em batalhas sangrentas, lutando ao lado do italiano Giuseppe
Garibaldi, que aportou por estas bandas em 1836. Talvez esse fosse o destino das mulheres da
família que pariram filhos para amargar longas esperas, rezando e aguardando o
fim de cada batalha a fim de poder reencontrar com vida os seus. Vez por outra se sente falta a quem destinar sofridos
afagos, nem mesmo muito crochê e tricô abrandavam a angústia e a tristeza da
espera.
Giuseppe
Garibaldi veio para Laguna, oriundo do Rio Grande do Sul, mais precisamente da
cidade que estava sitiada. A jornada tornou-se
épica demostrando a astúcia e a engenhosidade do navegador, que trouxe os navios
construídos no Rio Grande do Sul em carros de boi por entre as serras gaúcha e
catarinense entrando pelo que chamamos Mar de Dentro – um enorme complexo lagunar
que banha quatro cidades e desemboca na Barra de Laguna – local em que o
italiano surpreendeu os navios imperiais que aguardavam a sua chegada por Mar
Aberto. Assim, ele conhece Ana, que
também lutava na revolução e a partir dali passaria a ser chamada, pelo galante
italiano, carinhosamente de Anita. Com a
derrota dos republicanos, Garibaldi foi para Montevidéu com sua mulher, que
ficou conhecida como Anita Garibaldi. Dirigiu as defesas de Montevidéu em 1841,
contra as incursões de Oribe, ex-presidente uruguaio, apoiado por Rosas, o
ditador da Argentina.
À época em que Garibaldi
chegou a Santa Catarina, sua tripulação era composta por rebeldes italianos,
espanhóis e bascos. Todos bravos
guerreiros em terra e mar. Entre os mais
chegados estava o napolitano Antônio Latrônico, marinheiro experiente, apesar
de jovem. Combateram lado a lado em
inúmeras batalhas.
Beda Batista - 15/dez/15 - Santa Catarina - Brasil.
Autorizada a reprodução desde que citadas: A fonte, o autor e a data de publicação.
Beda Batista - 15/dez/15 - Santa Catarina - Brasil.
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