terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A SAGA - Parte I

NAQUELA ÉPOCA

Caminhando pelas ruas chuvosas da cidade dos príncipes, Anna pensava nos tortuosos caminhos que a levavam novamente à maior cidade do estado.  Buscando uma nova residência para mudar definitivamente de vida e abandonar os sofrimentos que a marcaram, na luta para criar os seus filhos.  Anna deparou-se com os arranjos iniciais, tratados com a senhoria para locação de uma modesta casa em estilo enxaimel na periferia da cidade.  A frustração ocorreu no segundo encontro, quando a velha senhora desdisse o acordo verbal realizado pelo esposo e acabou tirando o chão dos pés de Anna.  O principal motivo daquela viagem era a formalização do contrato de aluguel e a correspondente entrega das chaves do imóvel, que daria um novo rumo à vida de sua família.  Mãe de cinco filhos, abandonada pelo marido e travando batalhas diárias para prover o sustento dos seus, Anna dispunha de uma fé inabalável e uma força descomunal que moviam seu corpo franzino e lhe davam o ânimo necessário para enfrentar as adversidades e reveses que a vida insistia em colocar em seu caminho.
Naquela tarde, no entanto, Anna estava aflita, pois todos os planos que fizera no último mês estavam fadados ao fracasso pela simples má vontade de uma senhora de humor azedo e cara de poucos amigos, além, é claro, de um homem sem pulso firme, que cedia aos humores e às vontades da esposa.
Sentada no banco do terminal urbano, próximo ao mercado público municipal, a jovem mãe pensava aflita nas alternativas que a vida lhe dedicava. 
Lembrou-se então que um parente distante morava na cidade, e que, talvez, se o encontrasse a sua sorte poderia mudar.   Mas, numa cidade daquele tamanho, seria praticamente impossível, encontrar alguém sem ao menos um endereço. Em suas orações, pedia silenciosamente, que nosso Senhor intercedesse por ela e iluminasse seus caminhos a fim de orientar seus passos.
A chuva não dava tréguas e o rio que cortava Joinville, de norte a sul, já transbordava em vários pontos, transformando-a num pandemônio, o que, invariavelmente, preocupava os moradores, que estavam cansados e já não lembravam quantas vezes tiveram de deixar suas casas por causa das constantes cheias.  Os coletivos apinhados de gente encontravam dificuldades em chegar ao terminal, pois as ruas às margens do rio estavam completamente alagadas impossibilitando a travessia motorizada.  Anna continuava suas preces agora pedindo também pelo fim das chuvas para que àquelas pessoas trabalhadoras não perdessem seus pertences e tivessem de abandonar seus lares.  Enquanto isso, os agentes de transporte municipal orientavam os transeuntes e passageiros a buscarem os abrigos públicos, oferecidos pela cidade nos casos de enchentes.  Anna não tinha alternativa, pois todos os transportes intermunicipais, partindo da cidade dos príncipes foram interrompidos, de maneira que não tinha como retornar à sua cidade natal, a única saída seria pernoitar num abrigo.  As lembranças das tristes histórias de família contadas por sua mãe, o medo do desconhecido e a incerteza do que poderia lhe acontecer eram inevitáveis.
Bateiras cruzam ligeiramente o canal, que separa o bairro central e a periferia da cidade, fazendo o transporte da população ribeirinha para os abrigos, desde a madrugada, quando a notícia das cheias fora anunciada nas rádios locais.  Idosos, crianças e mulheres tinham prioridade naquele fuzuê que se instalava nas ribanceiras próximas ao rio e que serviam de atracadouros naturais para os canoeiros.  Anna aguardava impaciente e frustrada num dos barrancos, enquanto o aglomerado humano ia crescendo.  O choro de crianças irritadiças e o murmúrio lamentado dos velhos dava um ar ainda mais melancólico à situação.   Cachorros, gatos, galinhas, cabras, porcos, cavalos e gado eram levados pelos seus proprietários aos barrancos na esperança de conseguir salvar parte importante de seu sustento.  A algazarra era geral, o que dificultava ainda mais o trabalho dos voluntários, responsáveis pela organização das filas e de relacionar em listas improvisadas os nomes de quem buscava proteção à intempérie.
Anna ouviu seus pensamentos que vagavam por ali, dizendo algo do tipo: “já que te propuseste a lutar pela mudança de vida, não podes desistir agora.” Mesmo em meio à grave crise que se abatia no Vale do Itajaí por ocasião das chuvas intermitentes, seu ânimo estava renovado, como se toda àquela chuva houvesse lavado sua alma, preparando-a para novas batalhas.
- Ei Senhora, ei a Senhora está bem? – Uma voz de garoto a trouxe a tona dos devaneios.
- Sim.  Estou bem. - respondeu Anna, sem muita convicção.

No abrigo, Anna não deixava de pensar em como as crianças estavam.  Se tinham se alimentado, se foram à escola ou estavam fazendo bagunça e brigando entre si.  Não era fácil a criação de cinco filhos, mas ela não reclamava e lembrava sempre: “Deus dá o frio, conforme o cobertor”.
Desde que fora abandonada pelo ex-marido, ela batalhava o sustento diário dos filhos fazendo fretes de carroça, puxada por um inestimável cavalinho branco.  A filha mais velha, Cléo, era empregada doméstica na casa da irmã caçula de Anna, uma costureira que tinha um casal de filhos.  Cléo sonhava em ter uma vida melhor e ajudava no sustento dos irmãos menores.  O mais moço, Francisco, tinha vinte e três dias de vida, quando João a abandonara, sem remorsos, deixando para trás uma jovem e seus cinco filhos numa humilde casa, e, fora viver com a segunda família que havia constituído na cidade das minas de carvão, no sul do estado. 
A vida não tinha sido fácil até ali, mas ela tinha confiança em Deus e esperança de que dias melhores estavam por vir.  Disposição para o trabalho digno e bravura eram marcas registradas das mulheres da família.  Todas, em maior ou menor grau tiveram de alguma maneira que demonstrar coragem e bravura frente às dificuldades que se abatiam de tempos em tempos sobre a família.  Com ela, certamente, não seria diferente.
Certa vez, sua mãe lhe contou como o avô desalmado, havia tirado todos os filhos, um a um, da avó e os levara para a sua concubina cria-los.   Naquela época, os homens tomavam as decisões mais arbitrárias possíveis sem precisar dar quaisquer explicações a quem quer que seja.  Principalmente, às mulheres que eram completamente submissas aos homens em casa e em qualquer ambiente.  Muitas crueldades foram cometidas pelos homens, em nome da honra e do bem, certos que estavam da sua superioridade em relação às mulheres. 
Mas as mulheres desta família mantinham sob sua égide a disciplina rígida e o caráter imaculado.  Ainda que os sofrimentos lhes escorressem como água buscando uma saída, todas mantinham a seriedade, a confiança e a fé em Deus, certas de que dias melhores estavam por vir.
Lembrou-se das histórias contadas pela saudosa Tia Julinha.  Tia Júlia, carinhosamente chamada pelo diminutivo, foi quem ingressou Anna nas estranhas histórias familiares que acompanhavam a família em uma eterna circunavegação de fatos, coincidências e desencontros, assim como o espanhol Fernão de Magalhães o fez ao redor da terra, embora não tenha voltado vivo para receber os louros da fama.
Tia Julinha não permitia que brincassem com espíritos, pedindo sempre respeito aos desencarnados.  Ela tinha o dom da clarividência e conversava horas a fio com familiares próximos e distantes, além de conhecidos da família desde eras imemoriais que por motivos diversos haviam feito a passagem.
Ela trazia recados do universo paralelo com os mais diversos fins, desde pedido de desculpas até indicação de locais de interesse familiar, para a guarda de bens e valores.
Tia Julinha vivia falando de uma prima destemida, que todos admiravam pela bravura da mulher guerreira, respeitada por estas paragens de colonização açoriana, no Uruguai e na Itália, uma tal de Anita, que era sua prima e que vez por outra aparecia para longas tardes de broas de milho, café coado e confidências extra temporais.  Anos depois vim, a saber, mais detalhadamente da verdadeira história que rondava Anita e de quem realmente se tratava.  Simplesmente, Ana Maria Ribeiro da Silva.  Nasceu em Santo Antônio dos Anjos da Laguna, casou-se com um sapateiro pinguço, que foi morto enquanto lutava nas tropas da colônia contra a Revolução Farroupilha e a República Juliana.  Nos longos anos de confronto entre os farroupilhas, liderados por Bento Gonçalves, e, o exército imperial, milhares de brasileiros morreram.  Lembro-me de uma tarde em que adentrei ao quarto de tia Julinha e ela chorava baixinho, enquanto resmungava e pedia para a prima mudar de assunto, posto que a história daquele massacre em Imaruí, perpetrado pelas tropas de Canabarro, a amolava por demais.  Anita participou ativamente, ao lado de Giuseppe Garibaldi, seja no mar, local em que o italiano lutava com maestria, por dominar os seus segredos bem como os da navegação, passados pelo seu pai; ou em terra onde a pequena catarinense dominava laço e montaria, além de manejar com maestria punhais, lanças, facas e armas de fogo.  Ou seja, Anita Garibaldi era prima irmã de minha tia avó.  Tínhamos uma heroína na família e todos ignoravam a importância que nossa parenta exerceu dando exemplo, a muitos marmanjos, de como se portar em uma peleja.  Aquilo me deixava intrigado, e hoje penso que este tenha sido o principal motivo das minhas incessantes buscas nos sótãos da família garimpando manuscritos antigos e quaisquer tipos de vestígios que pudessem ao menos dar uma luz sobre parte da história da minha família, do meu povo e do meu país.  Assim a nossa história vai se fundindo com os acontecimentos que ocorreram em tempos antigos, em lembranças que se estendem das águas límpidas do litoral catarinense colonizado por açorianos aos pampas gaúchos, vertente das missões dos sete povos.  Abrangendo o sul do país e descambando lá para os lados dos descampados do Uruguay.
Não que isso mudasse alguma coisa a minha vida.  Mas, certamente, mudou a vida de nossas famílias, que se envolveram diretamente em batalhas sangrentas, lutando ao lado do italiano Giuseppe Garibaldi, que aportou por estas bandas em 1836.  Talvez esse fosse o destino das mulheres da família que pariram filhos para amargar longas esperas, rezando e aguardando o fim de cada batalha a fim de poder reencontrar com vida os seus.  Vez por outra se sente falta a quem destinar sofridos afagos, nem mesmo muito crochê e tricô abrandavam a angústia e a tristeza da espera.
Giuseppe Garibaldi veio para Laguna, oriundo do Rio Grande do Sul, mais precisamente da cidade que estava sitiada. A jornada tornou-se épica demostrando a astúcia e a engenhosidade do navegador, que trouxe os navios construídos no Rio Grande do Sul em carros de boi por entre as serras gaúcha e catarinense entrando pelo que chamamos Mar de Dentro – um enorme complexo lagunar que banha quatro cidades e desemboca na Barra de Laguna – local em que o italiano surpreendeu os navios imperiais que aguardavam a sua chegada por Mar Aberto.  Assim, ele conhece Ana, que também lutava na revolução e a partir dali passaria a ser chamada, pelo galante italiano, carinhosamente de Anita.  Com a derrota dos republicanos, Garibaldi foi para Montevidéu com sua mulher, que ficou conhecida como Anita Garibaldi. Dirigiu as defesas de Montevidéu em 1841, contra as incursões de Oribe, ex-presidente uruguaio, apoiado por Rosas, o ditador da Argentina.

À época em que Garibaldi chegou a Santa Catarina, sua tripulação era composta por rebeldes italianos, espanhóis e bascos.  Todos bravos guerreiros em terra e mar.  Entre os mais chegados estava o napolitano Antônio Latrônico, marinheiro experiente, apesar de jovem.  Combateram lado a lado em inúmeras batalhas.

Beda Batista - 15/dez/15 - Santa Catarina - Brasil.
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