sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Custódio Borba - parte II

Registro único de Emerenciana - a virgem. Foto: Fotosearch.com

Emerenciana, a Virgem, enclausurou-se no sótão do sobrado e nunca mais se retirou dali, nem para banhar-se. Os cabelos e unhas não foram cortados, uma única vez após aquela noite trágica de inverno. Alguns maledicentes afirmam que a garota transformou-se numa feiticeira e que pratica religiões africanas, inclusive magia negra e vodu. Embora, ninguém mais, exceto sua criada Madalena, a veja desde então.


Velho índio chamado às pressas por Dom Carmelo. Foto: Fotosearch.com

O velho índio permaneceu longa data em Santana dos Prazeres, sem se comunicar com nenhum morador do vilarejo. Todos pensaram que o indígena fosse mudo, quando de súbito, Zé Bento, homem de ouvir muito e falar pouco, manifestou-se dizendo: “Como o pobre homem pode ser mudo, se fez as invocações dos espíritos?”.
Foi quando todos da cidade lembraram o motivo da visita do silvícola. O tempo passava tão lentamente na vila, que as pessoas acabavam por esquecer datas, e motivos de chegadas e partidas. Talvez o único, que mantivesse os sentidos e as lembranças intactos fosse Custódio Borba. Enclausurado, por opção, em seu barraco às margens da praia, tinha poucos amigos e detestava jogar conversa fora. Era dado a estudar as estrelas e coisas do céu, bem como, as do mar lhe atraiam. Tornou-se homem de confiança e leal amigo de Zebedeu, viajaram durante anos e lutaram juntos na guerra da Libertação das Guianas e conheceram, pessoalmente, o lendário Coronel Aureliano Buendía. Certa vez o ajudaram a escapar de uma emboscada preparada pelo governo, em plena selva amazônica. Foram reconhecidos como amigos e cavaleiros de Macondo, recebendo a Cruz Real com todas as honras militares que a ocasião exigia. Isso foi há muito tempo. As lembranças o incomodavam, pensava na mutilação de seu irmão Fulgêncio Borba, na guerra das Guianas quando retornavam do encruzamento dos mundos, caminho antes percorrido por Átila – O rei dos hunos, e quando deserdaram separando-se e nunca mais se encontrando. Lembrou de todas as histórias que ouviram dos ciganos e beduínos que conheceram ao longo dos tempos na antiga e remota Cazuota. Principalmente, de Odara, a linda cigana, que fazia as mais inimagináveis previsões e leituras manuais.
Ressurgiu das inconscientes lembranças, quando a porta tornou a bater com força. Calmamente, levantou-se e a escancarou, sentiu a leve brisa do mar afagar-lhe os cabelos, inspirou profundamente e observou os pescadores carregando os carros-de-boi. Por um momento exitou em tomar a rua esburacada e empoeirada. Largou o mate e apertou forte entre os dentes o cigarro aromático, acendendo-o novamente. Caminhou em direção à praia para ver o resultado da pesca, sem pensar em nada. O céu começava a escurecer na direção em que nas noites estreladas via-se o cruzeiro do sul. Na ponta da ilha, um garoto saltava das pedras para o mar, sem preocupar-se com as baleias e golfinhos que revoluteavam nas proximidades.
O pequeno Pedro aproximou-se sem cerimônias e perguntou-lhe se os araçazeiros
[1] já estavam carregados. Custódio, surpreso com a investida do garoto, respondeu que sim e que este poderia buscar os frutos quando quisesse. Pedro saiu em disparada para comunicar aos amigos sobre a novidade doce dos araçás.
De súbito, um sem número de garotos aglomerou-se nas árvores frutíferas das imediações da casa de Custódio Borba. Ele de longe apenas observou e riu-se sozinho das pequenas lições de felicidade do cotidiano infantil.
Ao aproximar-se dos barcos sentiu o forte cheiro dos crustáceos, que vinham perdidos nas redes de pesca, misturado ao aroma agradável do alecrim, do loro e do açafrão ferventes num caldo de baleia, preparado sob as frágeis coberturas dos barcos, numa grande panela de barro, para as comemorações do centenário de libertação de Gambé Maranduvá – O Fantasma.

[1] Pequena árvore silvestre frutífera.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Custódio Borba - parte I

Bem, antes de começar a partilhar dos contos que escrevo gostaria de fazer alguns esclarecimentos.
Alguns personagens e lugares são reais, embora, por opção, eu tenha alterado nomes e datas a fim de preservar as pessoas envolvidas. As histórias são fictícias, porém estão misturadas a fatos históricos reais o que, na minha opinião, valoriza ainda mais os textos.
Espero, sinceramente, que você curta e tenha uma boa leitura. Se quiser fazer algum comentário, terei o prazer de responder.

Beda Batista



A TRANQUILIDADE DE CUSTÓDIO BORBA
Pescadores e curiosos em volta do belo lance de tainha. Foto: Arquivo Beda Batista.

Custódio Borba não teve tempo de segurar a porta. O forte e doentio vento nordeste, típico dos agostos tristes, na pequena vila de pescadores, que perdurava há exatos 45 dias, a fez bater com tamanha violência que o abrigo do velho homem tremeu como num terremoto, fazendo cair o liquinho[1] que iluminava o ambiente lúgubre. O calor insuportável levava a população diariamente a abrigar-se sob as frondosas jabuticabeiras emborcadas e poeirentas do vilarejo. No entardecer, os pescadores puxavam as redes de pesca abarrotadas de sardinhas e papa-terras. Da cozinha, da velha casa carcomida e mal tratada pelo salitre, Custódio Borba com olhar perdido observava a movimentação na praia. O fogão à lenha aquecia a água para o mate[2] de fim de tarde, aproveitou e derramou uma mancheia de amendoins, colhidos na pequena horta, sobre a chapa para assar, enquanto enrolava lentamente seu cigarro de ervas aromáticas holandesas. O vento lá fora parecia não estar disposto a cessar. Os uivos dos eucaliptos e o torcer dos galhos das figueiras centenárias produziam uma música aguda e irritante. Os carros-de-boi[3], utilizados como meio de transporte, estavam perfilados na praia aguardando o fim da puxada de redes, para iniciar o transporte dos frutos do mar.
Por essa época chegou à vila de Santana dos Prazeres, vindo das águas quentes das Bermudas, um velho índio, que trazia de arrasto um baú da mais pura canela preta, recoberto de trapos de chitão da cor azul, com babados de ouro e prata. O misterioso índio chegou de repente, instalou-se nas grutas formadas pelas pedras do costão e percorreu todo o promontório até encontrar a gruta do cabeleira. Ali se pôs a invocar santos e espíritos durante dias, até que o vento enjoado foi de súbito acalmando e por fim tornou-se uma leve brisa refrescante, já com direção oposta. Os boatos que se seguiram foram os mais variados. Embora o que mais se difundiu dava conta que Dom Carmelo, homem viajado e vivido, político influente e atencioso, dono de terras a perder de vista e cultivador de manacá
[4] e das secretas maçãs do amor, mandou chamar o velho índio para exorcizar o vilarejo do mal de Zebedeu.
Zebedeu foi seu capataz e homem de confiança, desde os remotos tempos da pesca das baleias. Era o responsável por recrutar, organizar e liderar os grupos que faziam incursões ao alto-mar para pescar os grandes cetáceos. Os homens que se aventuravam no mar eram premiados com quantias de grande monta, tinham privilégios na escolha de púberes para fins de matrimônio e de concubinas, também. Zebedeu, homem forte e de pele escura, tinha sangue de bugres e árabes, herança de seu bisavô, Amon o Altivo, marinheiro que deu a volta ao mundo mais de vinte vezes. Todos o respeitavam e o admiravam. Muitos marinheiros deviam-lhe a vida, salva em inúmeras tempestades marinhas.
Dom Carmelo, homem zeloso e paternalista, tinha uma filha de nome Emerenciana. Ainda menina, Mere a Virgem, como a chamavam carinhosamente, apaixonou-se e tinha sonhos inapropriados para a sua idade, com Zebedeu. Embora, desconhecesse os sentimentos da garota, Zebedeu nutria igual paixão secreta e impertinente. Tudo poderia não passar de uma simples paixão se ao completar seus dezesseis anos, Mere, não tivesse rompido a noite fria de inverno e procurado Zebedeu em seus aposentos, completamente nua sob o manto branco de núpcias, utilizado por todas as suas ancestrais desde a bisavó de sua tataravó. Loucos e cegos pela ardente paixão o casal se entregou aos devaneios do prazer e da luxúria. Na manhã seguinte, Zebedeu, como prova de sua honradez e subserviência procurou Dom Carmelo para pedir a mão de Emerenciana, com fins de formalizar assim a união e a paixão de ambos. Dom Carmelo, homem justo, mas incapaz de se submeter aos caprichos e à miopia do amor, não só negou-lhe a mão da filha como o expulsou a tiros e palavras de ingratidão, prometendo-lhe toda a sorte de maus agouros imagináveis. Zebedeu, homem de bem e de palavra, do qual se era cediço, nos quatro cantos do mundo, firmar acordos com apenas um fio de bigode, resignou-se a aceitar as determinações de Dom Carmelo, não sem antes prometer que o velho lorpa ouviria para sempre seus lamentos e murmúrios quando o vento soprasse do Equador. E assim o foi. A partir daquele dia, o vento nordeste entrava com mais intensidade e perdurava por longos dias, às vezes, meses e Dom Carmelo, apesar de seus quase dois séculos de idade, ainda escutava o fiel empregado nos dias que se sucediam o vento.



[1] Liquinho – Objeto utilizado para a iluminação de ambientes. Utiliza em seu funcionamento, óleo de baleias, gás ou querosene, como combustível.
[2] Erva Mate – Planta rasteira servida com água quente, bebida regional dos pampas. Em geral, utiliza-se uma cabaça (porongo), chamada de Cuia e uma Bomba, espécie de canudo de prata.
[3] Carro de Boi – Carro feito de madeira, em geral de 02 rodas, utilizado como transporte através da força animal (bois) por meio de cangalha de madeira.
[4] Manacá – Arbusto ornamental brasileiro.