quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Custódio Borba - parte I

Bem, antes de começar a partilhar dos contos que escrevo gostaria de fazer alguns esclarecimentos.
Alguns personagens e lugares são reais, embora, por opção, eu tenha alterado nomes e datas a fim de preservar as pessoas envolvidas. As histórias são fictícias, porém estão misturadas a fatos históricos reais o que, na minha opinião, valoriza ainda mais os textos.
Espero, sinceramente, que você curta e tenha uma boa leitura. Se quiser fazer algum comentário, terei o prazer de responder.

Beda Batista



A TRANQUILIDADE DE CUSTÓDIO BORBA
Pescadores e curiosos em volta do belo lance de tainha. Foto: Arquivo Beda Batista.

Custódio Borba não teve tempo de segurar a porta. O forte e doentio vento nordeste, típico dos agostos tristes, na pequena vila de pescadores, que perdurava há exatos 45 dias, a fez bater com tamanha violência que o abrigo do velho homem tremeu como num terremoto, fazendo cair o liquinho[1] que iluminava o ambiente lúgubre. O calor insuportável levava a população diariamente a abrigar-se sob as frondosas jabuticabeiras emborcadas e poeirentas do vilarejo. No entardecer, os pescadores puxavam as redes de pesca abarrotadas de sardinhas e papa-terras. Da cozinha, da velha casa carcomida e mal tratada pelo salitre, Custódio Borba com olhar perdido observava a movimentação na praia. O fogão à lenha aquecia a água para o mate[2] de fim de tarde, aproveitou e derramou uma mancheia de amendoins, colhidos na pequena horta, sobre a chapa para assar, enquanto enrolava lentamente seu cigarro de ervas aromáticas holandesas. O vento lá fora parecia não estar disposto a cessar. Os uivos dos eucaliptos e o torcer dos galhos das figueiras centenárias produziam uma música aguda e irritante. Os carros-de-boi[3], utilizados como meio de transporte, estavam perfilados na praia aguardando o fim da puxada de redes, para iniciar o transporte dos frutos do mar.
Por essa época chegou à vila de Santana dos Prazeres, vindo das águas quentes das Bermudas, um velho índio, que trazia de arrasto um baú da mais pura canela preta, recoberto de trapos de chitão da cor azul, com babados de ouro e prata. O misterioso índio chegou de repente, instalou-se nas grutas formadas pelas pedras do costão e percorreu todo o promontório até encontrar a gruta do cabeleira. Ali se pôs a invocar santos e espíritos durante dias, até que o vento enjoado foi de súbito acalmando e por fim tornou-se uma leve brisa refrescante, já com direção oposta. Os boatos que se seguiram foram os mais variados. Embora o que mais se difundiu dava conta que Dom Carmelo, homem viajado e vivido, político influente e atencioso, dono de terras a perder de vista e cultivador de manacá
[4] e das secretas maçãs do amor, mandou chamar o velho índio para exorcizar o vilarejo do mal de Zebedeu.
Zebedeu foi seu capataz e homem de confiança, desde os remotos tempos da pesca das baleias. Era o responsável por recrutar, organizar e liderar os grupos que faziam incursões ao alto-mar para pescar os grandes cetáceos. Os homens que se aventuravam no mar eram premiados com quantias de grande monta, tinham privilégios na escolha de púberes para fins de matrimônio e de concubinas, também. Zebedeu, homem forte e de pele escura, tinha sangue de bugres e árabes, herança de seu bisavô, Amon o Altivo, marinheiro que deu a volta ao mundo mais de vinte vezes. Todos o respeitavam e o admiravam. Muitos marinheiros deviam-lhe a vida, salva em inúmeras tempestades marinhas.
Dom Carmelo, homem zeloso e paternalista, tinha uma filha de nome Emerenciana. Ainda menina, Mere a Virgem, como a chamavam carinhosamente, apaixonou-se e tinha sonhos inapropriados para a sua idade, com Zebedeu. Embora, desconhecesse os sentimentos da garota, Zebedeu nutria igual paixão secreta e impertinente. Tudo poderia não passar de uma simples paixão se ao completar seus dezesseis anos, Mere, não tivesse rompido a noite fria de inverno e procurado Zebedeu em seus aposentos, completamente nua sob o manto branco de núpcias, utilizado por todas as suas ancestrais desde a bisavó de sua tataravó. Loucos e cegos pela ardente paixão o casal se entregou aos devaneios do prazer e da luxúria. Na manhã seguinte, Zebedeu, como prova de sua honradez e subserviência procurou Dom Carmelo para pedir a mão de Emerenciana, com fins de formalizar assim a união e a paixão de ambos. Dom Carmelo, homem justo, mas incapaz de se submeter aos caprichos e à miopia do amor, não só negou-lhe a mão da filha como o expulsou a tiros e palavras de ingratidão, prometendo-lhe toda a sorte de maus agouros imagináveis. Zebedeu, homem de bem e de palavra, do qual se era cediço, nos quatro cantos do mundo, firmar acordos com apenas um fio de bigode, resignou-se a aceitar as determinações de Dom Carmelo, não sem antes prometer que o velho lorpa ouviria para sempre seus lamentos e murmúrios quando o vento soprasse do Equador. E assim o foi. A partir daquele dia, o vento nordeste entrava com mais intensidade e perdurava por longos dias, às vezes, meses e Dom Carmelo, apesar de seus quase dois séculos de idade, ainda escutava o fiel empregado nos dias que se sucediam o vento.



[1] Liquinho – Objeto utilizado para a iluminação de ambientes. Utiliza em seu funcionamento, óleo de baleias, gás ou querosene, como combustível.
[2] Erva Mate – Planta rasteira servida com água quente, bebida regional dos pampas. Em geral, utiliza-se uma cabaça (porongo), chamada de Cuia e uma Bomba, espécie de canudo de prata.
[3] Carro de Boi – Carro feito de madeira, em geral de 02 rodas, utilizado como transporte através da força animal (bois) por meio de cangalha de madeira.
[4] Manacá – Arbusto ornamental brasileiro.

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