“O que é que
está faltando?!” A indagação era feita por sua própria consciência enquanto os
pensamentos de Iberê iam longe. Sentado
à meia-luz ao lado do leito 626-1, no qual roncava o seu velho pai,
internado às pressas à espera de um transplante.
O sofrimento é
mais uma daquelas provações impostas pela vida para testar nossos limites e ver
se aguentamos o “cagaço”. Pensou ele, observando o movimento do abdômen avantajado
do pai, que ressonava ligado à
uma infinidade de fios e aparelhos.
Olhou aos céus e informou que a sua cota já era suficiente e que já
havia entendido o recado direitinho.
A madrugada
abafada do verão no alto vale não podia ser aplacada com apenas dois ruidosos
ventiladores que giravam e teimavam em espalhar aquele calor modorrento pelo
quarto de leito único.
A televisão em
preto e branco, sem volume noticiava, à moda Chaplin, as desgraças recentes nas
capitais. O corredor sombrio e
silencioso do velho hospital convidava a divagar sobre uma meia vida turbulenta recheada de
altos e baixos, alegrias e tristezas, partidas e chegadas como uma verdadeira
colcha de retalhos do cotidiano. Um
mosaico de cores, lugares e cheiros que o remetiam aos mais variados cenários
num piscar de olhos.
Nesses momentos
sentia-se como um telespectador que assiste ao filme de sua própria vida, sem
pagar nada por isso. Ou melhor, a sua
cota já fora paga por todas as escolhas que fez e também pelas que deixou de
fazer. “Ces’t la vie”.
Da infância
trazia boas recordações. As peladas no
campinho onde hoje jaz uma praça abandonada e triste.
As guerrinhas de torrões nas areias amarelas e
repletas de bichos de pé no terreno baldio ao lado da casa do Seu
Marcolino. Que tempos depois recebeu uma
casinha verde que fora palco de um dos mais bizarros casos de fuga de casais da
história da vila.
À época Marli,
neta do Seu Marcolino namorava um “polaco”. O romance estava “descambando” para algo mais sério.
Seu Leno, o pai da moça, andava cabisbaixo, visivelmente preocupado com
o nome da família Dos Anjos e com o que as más línguas andavam dizendo de uma
das suas. Afinal, “falar pode, só não
pode ser das minhas”, sentenciava o velho pai.
Certo dia, um
domingo de manhã, correu a notícia à boca pequena que Marli tinha fugido com o
namorado. As especulações eram as mais
variadas.
Uns diziam:
- De certo estão
em Imaruí, o rapaz têm parentes por lá.
Outros
retrucavam:
- Não. Que
nada. O rapaz é de família dos Bentos, estão
lá em Santo Antônio dos Anjos da Laguna.
E, outros
afirmavam:
- Tenho certeza
que estão na Palhocinha, bem sossegados.
Mais rápido do
que a fuga do enamorado casal, os “arapongas”
de plantão do bairro, que dormiam com um olho aberto e outro fechado, trataram de
armar uma bolsa de apostas. O bolão
seria destinado a quem informasse o correto paradeiro do casal de pombinhos.
Os valores
apostados já montavam uma grande quantia ao final do dia e a expectativa
aumentava na vizinhança que em polvorosa só fazia aumentar o bolo de dinheiro
que ficou sob a responsabilidade da Dona Deza, a organizadora do novo jogo de
azar.
Ocorre que dois
dias depois do sumiço, a dinheirama na casa da Dona Deza começava a tirar-lhe o
sono. Em virtude da grande repercussão do caso, gatunos dos mais diversos
rincões começaram uma procissão à vila, antes afamado apenas pelo puteiro
com nome de fruta, agora recebia a visita de malandros que vinham e circulavam
no bairro com a desculpa de beber cachaça nos botecos do Seu Pióca ou do Seu Almor.
Seu Leno, homem
bem relacionado no meio político e policial solicitou então audiência com o
prefeito para que esse interferisse no caso e pleiteasse junto ao delegado uma
diligência a fim de encontrar os mancebos desaparecidos.
O prefeito,
homem de bem e de prezar pelos bons costumes e valores de família empenhou a
palavra que faria o que estivesse ao seu alcance para elucidar o paradeiro dos fugidios.
Na boquinha da
noite, o fusca da polícia apontou na esquina da rua com a sirene gritando aos
sete ventos e o bairro todo saia à rua para ver o que estava se sucedendo. O veículo oficial da autoridade policial
parou defronte à casa do Seu Leno(nos fundos morava seu Pai, Marcolino), dois policias carrancudos desceram e se empertigaram defronte ao portão carcomido pelo salitre. Os policiais não chegaram a pronunciar uma única palavra e a rua foi
imediatamente invadida por uma torrente de curiosos, apostadores e arapongas. A disputa por um lugar era ferrenha, com
espectadores sobre árvores, muros e até nos postes de madeira que sustentavam a
rede elétrica.
No meio da turba, a porta
da casinha verde se abriu de supetão, a multidão emudeceu e de lá surgiram as duas figuras mais procuradas
da cidade com os cabelos desgrenhados, olhos fustigados pelos últimos raios de
sol emanados sobre o morro da caixa d’agua, ambos apresentavam olheiras e as
caras desfiguradas pelo esgaziamento dos últimos dias.
A multidão
gritou em uníssono: “São Eles...Os Procurados...”.
Seu Leno quase
teve um colapso nervoso. O patriarca da família Dos Anjos, Seu Marcolino, desmaiou e precisou ser abanado pela família da fugitiva e passou uma semana tomando chá
de macela galega para aplacar o fervilhar do sangue.
Dona Enê, a mãe da jovem, passou a olhar a
vida dos outros com outros olhos. Aliás,
a partir de então, não se podia chamar de olhar e sim de espiadela, pois eram apenas os olhos que apareciam por sobre o batente da grande janela frontal na
casa da família Dos Anjos.
Quando a
multidão se acalmou, e os policiais se retiraram com dificuldade, tentando abrir caminho no meio do povaréu, sendo ovacionados por muitos pela resolução brilhante
do caso mais comentado dos últimos tempos na pequena vila, alguém gritou lá do
meio.
- Quem ganhou o
bolão?
Dona Deza, mais
que depressa correu em casa e pegou o caderninho de registro das apostas e
cercada pelos mais exaltados apostadores verificou que ninguém tinha apostado no
esconderijo mais prosaico.
Dessa forma,
ninguém era merecedor do maior prêmio já
acumulado em dois dias de que se tem notícia.
Então, fora
organizada uma fila que dava voltas e mais voltas no quarteirão a fim de se
fazer a devolução das quantias apostadas aos seus devidos donos, os apostadores.
Pela manhã de quarta-feira havia ainda uma dúzia de pessoas aguardando o
reembolso de seus valores.
Na casinha
verde, o casal permaneceu por mais uns dias até arranjar um verdadeiro ninho de
amor.
O aparelho ao
lado da cama começa a apitar informando que a bateria está fraca. Iberê acorda de seu devaneio e vai atrás da
enfermeira para corrigir o problema.
A madrugada está
apenas começando.
Beda Batista.
Escrito em 11/01/2013
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Este conto é meramente uma obra de ficção. As personagens, os lugares e as situações não correspondem à vida real e não foram baseadas em fatos reais.
Publicação autorizada, desde que sejam citadas a fonte, o autor e a data em que foi escrito.