quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Custódio Borba - parte final

Gambé Maranduvá se deparou com uma paisagem alucinante. Foto: Fotosearch.com.


Gambé foi um dos primeiros desbravadores da região leste continental. Deixado para trás pela tripulação de um velho galeão francês, numa viagem de reconhecimento à costa, então, desconhecida. Viu-se sozinho durante dias em praias de areias alvas e fundos de corais, costões rochosos e gigantescos coqueiros. No início, acreditou tratar-se apenas de um ligeiro engano. Com o passar dos dias, percebeu que seu destino estava traçado e que haveria de nunca mais voltar à sua terra natal, se dependesse da carcomida embarcação que o deixou.
Certo de que haveria de lutar para sobreviver naquele território inóspito, tratou de providenciar abrigo, erguendo uma cabana de pau a pique, cobrindo-a com as abundantes palhas de coqueiros. A comida era farta, tanto em frutas silvestres, como em frutos do mar. Começou a fazer incursões diárias colocando em prática uma série de conhecimentos adquiridos ao longo de toda uma vida de descobertas territoriais. Numa dessas investidas diárias deparou-se com nativos seminus que falavam um dialeto estranho. O primeiro contato com os nativos seria interessante se não fosse traumático. Cercado pelos homens do grupo foi levado a uma aldeia no meio da selva, a meio dia de caminhada. Já estava se sentindo como a verdadeira caça do grupo, quando foi amarrado sob uma frondosa figueira centenária. Durante toda a tarde observou o grupo nativo e notou a sua forma de organização. Os mais velhos coordenavam às ações dos jovens. As mulheres cuidavam da preparação dos alimentos, os homens apenas traziam a caça. As crianças menores brincavam de caçar, enquanto as maiores preparavam flechas, martelos e machadinhas. O longo período de isolamento o fez despertar para sentimentos e pensamentos pervertidos enquanto observava as jovens mulheres caminhando de peitos nus e quadris semicobertos. Nada passou despercebido pelo olhar atento de Gambé Maranduvá. Até que foi separado da grande árvore e levado ao interior de uma grande cabana de bambus-açús amarrados com cipós. Várias redes de cipós trançados pendiam da firme estrutura. Diversos couros de animais selvagens, com desenhos estranhos e pinturas das mais variadas cores, enfeitavam as paredes ao mesmo tempo em que cobriam as frestas.
No centro do ambiente, sentado com as pernas cruzadas e um longo cachimbo de ossos, do qual brotava uma densa fumaça branca com aroma de alcaçuz e menta, pendendo no canto direito da boca, um homem centenário com uma expressão tranqüila, apesar da pele queimada e embrutecida pelo sol implacável daquela região, fez um sinal com a mão esquerda, convidando-o a sentar. Gambé virou-se e mostrou-lhe o punho amarrado para trás. O velho homem fez um pequeno sinal aos homens, que, imediatamente, o desamarraram. Gambé fez uma reverência de agradecimento e sentou-se de frente para o velho, que o olhou nos olhos como que tentando perceber os desígnios da alma do infeliz abandonado. O velho, sem pronunciar uma só palavra, estendeu o cachimbo ao convidado, apesar de ressabiado, este o pegou e deu longas baforadas. O velho permaneceu imóvel, com a mesma expressão tranqüila, observando-o. O marinheiro começou a sentir-se zonzo e cansado, ao mesmo tempo em que transpirava de forma descomunal. Em seguida, teve a sensação de estar flutuando, e fez uma longa viagem astral, indo aos mais recônditos lugares que conhecia, sempre acompanhado de perto pelo velho nativo. Quando recobrou a consciência, estava deitado numa das redes, ainda observado pelo homem sentado no chão central da cabana. O velho aproximou-se dele e falou na língua de Gambé que ele poderia ficar e juntar-se ao grupo se quisesse ou seguir seu rumo se assim o preferisse. Gambé teve a nítida impressão de haver passado por um teste de admissão, tomou por fim a decisão de ficar e conhecer melhor aquele estranho povo. Dessa forma, foi iniciado em todos os ritos dos Inaraug, destacando-se no aprendizado dos dialetos dos povos ribeirinhos e do interior. Descobriu que viviam da caça e da pesca, além da colheita de frutas silvestres, abundantes naquela região, iniciou as técnicas de plantio já dominadas por outros povos em terras remotas. Tornou-se um grande guerreiro da tribo e teve o direito e a honra de deitar-se com tantas virgens nativas quanto quisesse. O velho sábio tornou-se o unificador de todos os povos da mata, Gambé por sua imagem de força e coragem foi proclamado o grande guardião da floresta, tendo a incumbência de organizar proteção aos povos amigos unificados, ensinar as suas famosas e difíceis técnicas de defesa, além de todas as tarefas rotineiras do cargo. Quando tudo parecia transcorrer na maior tranqüilidade, eis que surgem novas embarcações vindas de alto mar. A inamistosidade dos marinheiros e dos superiores acabou por deflagrar uma verdadeira carnificina. Munidos de armas que cuspiam fogo, como assim diziam os nativos, os intrusos iniciaram um banho de sangue. Gambé retirou todos os sobreviventes e levou-os ao interior da mata, organizando, assim, uma grande resistência, que utilizava como trunfo as tocaias e segredos da mata. A luta armada durou longos quatro anos, quando por fim conseguiram pegar o fantasma. Gambé recebera essa alcunha por mover-se rapidamente na floresta e dizimar hordas de Selar. Os Inaraug restantes, não passavam de cem. Não houve resistência. As mulheres foram humilhadas, as crianças tornaram-se escravas, os velhos foram subjugados e largados à sua sorte. Gambé foi preso e amarrado na proa de uma das embarcações como um troféu. Durante quatorze dia ficou sob sol, chuva e sereno até que um grande grupo de puros e miscigênicos, liderados pelo velho sábio, irrompeu da mata munidos das mais estranhas peças e dizimou para sempre os intrusos, libertando Gambé e os seus das mais terríveis e sofridas provações. A floresta permaneceu em festa por vários dias e várias noites. Para sempre aquela data seria lembrada, até mesmo na pacata vila de Santana dos Prazeres, da qual, Gambé Maranduvá – O Fantasma, foi o descobridor e até hoje é aclamado como protetor do povo.
Pessoas das mais diversas raças, credos e cor chegavam e montavam suas barracas e quitandas. A rua do Porto tornava-se numa imensa jogatina pública, os pipoqueiros, baleiros, biscateiros, vendedores de aguardente, ciganos, videntes, evangelizadores, libertadores, doutores e outros eiros e ores mais, amontoavam-se às cotoveladas para disputar um lugar onde pudessem colocar as barracas. As barracas da roleta, do tiro ao alvo e a de arremessos de dardos eram as mais disputadas, com filas organizadas que se tornavam quilométricas no meio da noite. A banda de música não parava um só minuto, deixando os músicos esbaforidos em pandarecos. Os jogos de azar, apesar de proibidos em todo o território nacional, eram praticados livremente sob a torcida e os olhares atentos dos policiais da guarda nacional. O de maior destaque era o jogo em que se apostava num animal que correspondia a um número. O resultado corria no final da noite sendo válidos os últimos cinco números do bingo beneficente promovido pela Igreja Universal da Salvação de Santana dos Prazeres.
Durante as festividades de comemoração do centenário de libertação do desbravador e guerreiro Gambé, o misterioso e velho índio, que trazia de arrasto um baú da mais pura canela preta, recoberto de trapos de chitão da cor azul, com babados de ouro e prata, aproveitou a multidão que chegou à vila e sumiu como que por encanto. Nunca mais se ouviu falar no silvícola misterioso e nem se teve certeza de quais os reais motivos que o trouxeram a Santana dos Prazeres.

Autor: Beda Batista
Escrito em: Setembro de 2002.
Revisto e Ampliado em: Março e Agosto de 2004.

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